terça-feira, outubro 30, 2007

Agricultura Biológica ou "Biutópica"

Em tempos, a propósito duma iniciativa louvável mas verdadeiramente utópica, designada por “um dia sem carros”, em que são encorajados os cidadãos a não utilizar viaturas particulares nas suas deslocações nesse dia, na reunião preparatória com os responsáveis autárquicos, em que participei, tive oportunidade de sobre este assunto manifestar a minha opinião. Não estava a ver que, além das pessoas detentoras de pelo menos dois carros familiares, houvesse muito mais aderentes, visto toda a gente ter a sua vida organizada em torno de horários rígidos, a que a sua viatura não é alheia. Ir levar e buscar filhos à escola, fazer compras nos grandes espaços comerciais, normalmente excêntricos em relação aos meios urbanos, fazer deslocações para e do trabalho com a oferta existente de transportes públicos, não me parecia possível sem graves sacrifícios familiares e pessoais.
Por outro lado, estar a pedir a pessoas que só muito recentemente haviam ganho o direito de usar uma viatura própria nas suas deslocações, representando isso um salto qualitativo no bem estar social e familiar, que abdicassem dele nem que fosse por umas horas, não me parecia realista.
Claro que os resultados acabaram por dar-me razão, com baixíssimas taxas de adesão à iniciativa. Ficou, no entanto, a mensagem, ficaram as intenções, falou-se da melhoria do ar respirável, da redução dos ruídos urbanos, da diminuição dos consumos energéticos, etc.
Com a agricultura biológica passa-se situação semelhante. Continuam a ser as pessoas que têm dois carros, com preocupações que ultrapassam a satisfação das necessidades básicas, as eventualmente interessadas em usufruir dos alimentos provenientes da designada agricultura biológica, isentos, à partida, de resíduos químicos tóxicos e prometendo sabores naturais, há muito desaparecidos dos palatos mais exigentes.
Ou seja, salvo explorações de pequena dimensão dirigidas a um nicho de mercado muito pequeno, mas com recursos acima da média, com uma rede de distribuição bem montada e uma divulgação adequada junto dele, não existe no meu entender grande futuro para esta actividade económica.
Vejo por outro lado, a possibilidade das pessoas dos meios rurais, que praticam uma agricultura de subsistência, poderem regressar um pouco aos processos tradicionais de tratamento da terra e de produção, com economia de meios financeiros e melhoria de resultados efectivos na qualidade dos produtos que colhem.
O que já não era mau, se assim acontecesse.
Trocar as químicas por produtos orgânicos na correcção das terras ou usar igualmente produtos naturais, armadilhas ou práticas agrícolas para afastar, iludir ou eliminar pragas que afectam as culturas, parece-me possível se as pessoas receberem a mensagem certa, na altura certa, por pessoas da sua confiança.
Não se pode estar a pedir a quem tem fome que não coma produtos resultantes de práticas agrícolas industriais, repletas de adubos, químicas preventivas ou curativas contra ervas e doenças. A fome mata mais do que eles.
Acresce a este facto, as intenções já anunciadas dos Estados Unidos, de quererem diminuir a sua dependência energética do petróleo por recurso ao BioFuel, combustível obtido a partir de cereais. Não parecem muito prometedoras no que respeita à biodiversidade e à utilização racional e natural dos solos, antes ocasionando uma corrida à monocultura destes produtos, com excessivo uso de adubos e pesticidas e com eventual ocupação de todas as terras disponíveis.
Vai ser, durante muito tempo, negócio garantido para quem faz da agricultura a sua profissão e o seu modo de vida.
Pode pedir-se a um empresário agrícola que abdique dele a favor da agricultura biológica, que a breve trecho não aparece como alternativa válida, em termos económicos?
As perspectivas não são as melhores, mas há que pensar o que estamos a fazer a nós próprios e às gerações vindouras.
Estamos a comprometer-lhes a própria sobrevivência.
Esta será mais uma questão a que teremos de dar resposta em breve: AgroBio ou BioFuel?

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Receita de Futuro, com futuro

A propósito de uma mensagem (post ou postagem)colocada no Blog "Mais Évora", de que sou um leitor esporádico, mas atento, em que o seu autor se fazia eco de resultados de sondagens à opinião pública e eleitorado do PS, naturalmente desfavoráveis ao governo de Sócrates, apraz-me registar um comentário anónimo, que refuto de bem conseguido, pelo menos em termos politico-linguísticos e que aqui reproduzo.

RECEITA DE FUTURO

A receita é simples:

Usa-se uma bola de cristal;
Adiciona-se-lhe uma pitada de realismo;
qb - Pessimismo;
qb - Observação;
qb - Sensibilidade;
Humor a gosto.
Misture-se tudo e leve-se a cozer em espírito brando.

O resultado é este possível futuro.

A comunicação – Sem fios.
Os telefones – Sem mãos.
A televisão – Sem interesse.
As compras – Sem dinheiro.
A roupa – Sem roupa.
As bebidas – Sem álcool, calorias ou açúcar.
A cozinha – Sem gordura.
A comida – Sem sabor.
A conduta – Sem preocupações.
Os relacionamentos – Sem compromisso.
Os sentimentos – Sem coração.
O estudo – Sem esforço.
A educação – Sem valores.
A juventude – Sem emprego.
A saúde – Sem cura.
A banca – Sem honestidade.
A justiça – Sem eficácia.
A política – Sem vergonha.
A discussão – Sem argumentos.
As asneiras – Sem conta.
A classe dirigente – Sem princípios.
A classe governante – Sem cérebro.
O povo – Sem interesse.
O nosso emprego – Sem segurança.
A vida – Sem esperança.

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segunda-feira, outubro 29, 2007

Muda a hora...não muda o tempo! (2)

Figura daqui

Muda a hora, não muda o tempo de espera nos hospitais para uma consulta, a espera para uma operação capaz de salvar uma vida ou recuperar a visão.
Muda a hora, não muda a expectativa de emprego dos portugueses, a esperança de melhores dias ou o clima de confiança entre nós.
Muda a hora, mas não ganhamos tempo na corrida contra a degradação ambiental, pese embora algum esforço que vem a ser feito, sobretudo ao nível das camadas mais jovens. Mudar a hora não faz atrasar processo de estender o conflito armado aos quatro cantos do mundo.
Mudar a hora não nos faz mais novos ou mais velhos, apenas nos torna mais cépticos. Muda a hora, mas não mudam os ventos da História.
Atrasar a hora, não significa que estejamos adiantados, apenas quer dizer que podemos dormir mais hora…para quem o conseguir.

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domingo, outubro 28, 2007

Muda a hora...não muda o tempo!

A vida moderna implica alteração da hora, adaptando os horários de trabalho à luz do dia.
Nem sempre terá sido assim.
Tempo houve em que o período de trabalho útil, no campo, era de sol a sol. Isto é, do nascer do sol ao pôr do mesmo.
Que interessava mudar a hora? Tinha sido necessário era mudar o Sol.
De Verão, trabalhava-se mais tempo pelo mesmo dinheiro de Inverno. Acabados os trabalhos de campo, ceifas, debulha, recolha e armazenamento de palhas e fenos, os patrões aproveitavam este período de dias longos para fazer todos os outros trabalhos nos montes e instalações de apoio.
De Inverno, só as tarefas fundamentais eram feitas e muitas vezes reduzidos os salários por oferta excessiva de mão de obra. O trabalho não rendia para o patrão.
A mudança de hora visa também diminuir gastos energéticos, com iluminação artificial em alguns locais de trabalho. Mais cosmética do que ganhos efectivos.
O facto de mudar a hora não nos muda a vida, apenas os hábitos.
Na nossa mania de tudo medir, arranjámos uma máquina de matar, tremenda, horrorosa – a medição e contagem do tempo.
O stress é sobretudo motivado pelo cumprimento de horários de trabalho, de transporte, de levar e buscar os filhos ou os netos à escola, de fazer horas suplementares para ganhar mais alguma coisa, num frenesi que nos vai desgastando por dentro e por fora.
A luta contra o tempo, passa por programar a vida de fio a pavio, por odiar a pequenez dos meses face à grandeza dos salários, pela enormidade do período de trabalho face à insignificância dos tempos de lazer. Nas cidades grandes, este problema agrava-se com as condições de alojamento e da poluição sonora e do ar que se respira.
Mudar a hora, significa apenas mudar a marca do tempo um furo mais acima ou mais abaixo.
A monotonia da contagem do tempo só tem paralelo na monotonia de esperar por melhores tempos para este país e suas gentes.

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sábado, outubro 27, 2007

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Cantigas e Vozes na Luta de Classes

Sergio Godinho - Primeiro Dia

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Hidrogénio, meu amor

Com o petróleo a atingir, não tarda, os 100 dólares o barril, vão definitivamente avançar as formas de energia renovável – solar, eólica, biomassa e também terão um empurrão as tecnologias de produção de outras formas de energia não poluentes, baseadas nas células combustíveis (Células de hidrogénio).
Já no início do século dezanove era conhecida a dissociação da água em oxigénio e hidrogénio, provocada por uma corrente eléctrica.
O processo inverso só mais tarde, ainda no mesmo século, foi conseguido, através da chamada pilha a gás ou mais modernamente designada célula combustível (Fuel cell). Esta, funciona como pilha, em que pelo ânodo de carbono revestido dum catalisador poroso (platina) é fornecido hidrogénio e pelo cátodo oxigénio. No meio um electrólito líquido ou membrana de polímero.
Grosso modo, da reacção entre o hidrogénio e oxigénio resulta energia eléctrica, a aproveitar, e um resíduo constituído por vapor de água, inofensivo em termos ambientais.
Neste momento, já há carros movidos por este tipo de energia com preços elevados, sobretudo, devido ao custo do catalisador. Também foram utilizadas células destas em missões espaciais, pela NASA.
Experiências com outros metais menos nobres parece terem tido algum êxito (titânio e níquel), o que permitirá encarar com algum optimismo a generalização do seu uso na construção das células, baixando-lhes o custo drasticamente.
Outras questões se colocam. Como armazenar de forma segura o hidrogénio, altamente combustível e como garantir o seu abastecimento de forma generalizada. O que acontecerá em caso de colisão entre veículos com este tipo de gás armazenado.
Soluções mistas derivadas deste conceito de célula combustível, usando gases menos perigosos, como o metano, para produzir o hidrogénio necessário ao funcionamento da célula, estão a ser desenvolvidas. Neste caso, existem emissões indesejadas de gases poluentes carbonados, embora de menor impacto ambiental.
Haverá ainda um longo caminho a percorrer até que os automóveis de série sejam dotados deste novo modo de propulsão, mas não demorará tanto que os nossos filhos e o ambiente não possam deles beneficiar.
Isto tudo o devemos à guerra entre americanos e árabes, que elevou o preço do crude a valores que compensaram o investimento em energias alternativas.
Os meus netos agradecem.

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quinta-feira, outubro 25, 2007

Hoje...cavo eu!

Pode ser impressão minha, mas parece-me haver mais terra trabalhada este ano do que tem vindo a ser costume ultimamente.
Será que a agricultura está a ressurgir das cinzas?
Depois dos subsídios para não cultivar, será que chegaram os ditos para cultivar? Será que as importações chinesas esgotaram as reservas europeias de produtos agrícolas? Será que o BioDiesel está a animar o mercado de cereais? Ou será tudo apenas imaginação ou vontade minhas?
Provavelmente, isso!
O campo é tão bonito quando está todo tratado, com as lavouras feitas à espera da sementeira ou, já com ela feita, aguardando a chuva que garantirá o verdejar esperançoso de colheitas fartas.
Ainda me lembro dos alqueives enormes que nesta altura tinha que calcorrear atrás das perdizes. Hoje são raros como elas, de resto.
Tirando as áreas de pastoreio em que ainda se vão fazendo algumas culturas forrageiras, de cevada, aveia, sorgo ou milho painço, pouco ou nada mais resta. Os alqueives já não são necessários porque a terra não precisa de descansar.
Descansada está ela demais.
Segundo os ecologistas, maus tempos nos esperam com alterações climáticas profundas, com doenças de características endémicas, transmitidas por mosquitos originários do Nilo, por carraças ou ainda com origem nos ratos.
Por sorte ou azar nosso, devemos estar vacinados contra este tipo de epidemias, pois que a exposição a tantas picadelas e ataques dos parasitas que por aí pululam, já nos deve ter dado a protecção necessária para sobrevivermos.
Somos, de resto, um povo de sobreviventes. Sobrevivemos aos Árabes, aos Reis Católicos, ao Salazarismo e vamos certamente sobreviver ao que está para vir.

Com fé, mas sem devoção!

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quarta-feira, outubro 24, 2007

As voltas do vinho

Isto de fazer vinho, tem que se lhe diga! E manter a reputação, nem lhes digo nem lhes conto!
Mas dá um gozo dos diabos!
O ano passado as uvas estavam carregadinhas de açúcar e deram um vinho de quinze graus. Apesar de ter sido difícil a fermentação malo-láctica, ou seja, a decomposição pelas bactérias lácticas, do ácido málico em ácido láctico e outros componentes, o vinho acabou por ser considerado um vinho excepcional no meio dos seus pares amadores.
Este ano, a coisa está mais preta do que tinta. Para já, a quantidade de açúcar na uva diminuiu substancialmente com umas chuvadas em véspera de vindima, que fizeram alterar consideravelmente todos os parâmetros vínicos.
Praticamente a mesma quantidade de uva do ano transacto, produziu mais 15% de vinho este ano, o que obrigou a arranjar vasilhame extra para garantir o processo complementar de vinificação, após a fermentação.
Daqui resultou que o vinho armazenado em vasilhas de plástico tem sofrido um processo diferenciado daquele que foi guardado em cuba inox.
Enquanto neste decorre o processo sem grandes perturbações, no outro aconteceu qualquer coisa de estranho que fez aparecer ácido sulfídrico e lhe pôs um cheiro nauseabundo a ovos podres, que obrigou a uma manobra, que esperemos resulte, de o fazer arejar e passar por um instrumento de cobre.
Espera-se que o ataque do ácido ao cobre liberte o SO2, retirando-lhe aquele cheiro desagradável, que necessariamente lhe alteraria também o sabor e anularia de todo o prazer de o beber.
Se assim for haverá mais vinho, este ano, para partilhar com os amigos. Doutra forma, ficar-se-á reduzido à quantidade do costume, eventualmente com menos qualidade do que o anterior, mas na mesma com a certeza de que se bebe um vinho natural, sem aditivos, feito com o nosso esforço e carinho.
Não tenho dúvidas que saíria muito mais barato comprar um bom vinho numa área comercial, certamente “mais bem feito”. Mas, quando o estivesse a partilhar com os amigos estaríamos a beber um vinho que qualquer deles poderia ter adquirido em qualquer lugar e não a beber um produto único, fruto da teimosia, do trabalho e da aprendizagem.
Esta, provavelmente a última a ter oportunidade de tentar de forma sistematizada.

segunda-feira, outubro 22, 2007

Décimas sem mote, porque uma rosa é uma rosa, é uma...rosa

Já me perdi pelo mundo
Já nele me encontrei
Algumas vezes me cansei
Do muito que já vivi
E de tudo aquilo que vi
Resta-me agora pensar
A quem vou eu dar
Esta rosa que colhi
Que de entre todas escolhi
Para ver e para cheirar

Rosa bonita e cheirosa
Apesar dos teus espinhos
Alegras os caminhos
Enfeitas a minha prosa
Fácil e enganosa
Com teu intenso perfume
Acendes no peito o lume
Que te há-de um dia secar
Como a dor dentro do peito
Arderás do mesmo jeito
Até o odor se acabar

Tão frágil e singela
Que linda é esta flor
Tal e qual como o amor
Faz da menina, donzela
Pondo nos olhos dela
Do mar, o azul sereno
Do luar, o suave e o ameno
Um raio de luz e esperança
Fazendo da sua trança
Um voto de amor pleno

Rosa branca, rosa pura
Ou desmaiada tão só
Tenho no peito um nó
Que já há muito perdura
Feito de amor e ternura
Gostava de o desatar
Bastando para isso cheirar
Teu perfume, teu olor
Já sinto no peito o calor
Que um dia o há-de soltar

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quinta-feira, outubro 18, 2007

Se cá nevasse...

Tive um administrador que se lamentava do facto das empresas serem obrigadas a ter pessoal. Era uma chatice. Salários, encargos sociais, sindicatos, greves, formação profissional, processos disciplinares. Enfim um calvário empresarial.
Não há dúvida que se tratava dum empresário com visão estratégica. Não sei se não estaria mesmo a preconizar esta tal de flexisegurança.
Não sei para que quer o governo este mecanismo, uma vez que quase não há empresas. E trabalhadores cada vez menos, pelo menos com trabalho. Quem falta despedir?
Desculpem, há uma coisa nisto tudo que me faz uma confusão dos diabos. Se querem despedir, para que estão a obrigar as pessoas a trabalhar até caírem da tripeça?
Este modelo foi importado dos países nórdicos, da Dinamarca ao que parece. E com amor. Ai não, isso era da Rússia! Que disparate!
Já em tempos adoptámos esquemas nórdicos. Estou a lembrar-me duma escola cujo projecto e financiamento foi feito pela Noruega. Construída e entregue ao Ministério da Educação foi inaugurada com pompa e circunstância.
A dita escola começou a funcionar e os putos foram perguntar à direcção da escola para que eram umas coisas que havia à entrada do edifício muito certinhas, que pareciam para prender as bicicletas mas não davam, eram pequenas.
Perguntas para cá, perguntas para lá e pronto, lá se ficou a saber que aquelas coisas eram para encaixar os skis, antes de entrar no edifício.
Não sei mesmo se os alunos não foram obrigados a comprar skis, só para justificar a dádiva generosa das entidades norueguesas.
Estas coisas fazem-me sempre lembrar uma cantiga da Lena de Água e dos Salada de Frutas – Se cá nevasse fazia-se cá Ski.

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quarta-feira, outubro 17, 2007

No Tempo do Pirolito

Prefiro lembrar desta forma a época de que vou falar, porque de qualquer outra não guardo tão gratas recordações, em termos de vivência e civilidade, na terra que me viu nascer.
O pirolito era um refresco que muitos ainda recordam com saudade, que mais não seja pela garrafa do berlinde, que se abria pressionando-o com alguma força.
Era posto a refrescar em celhas de madeira com água fresca do poço, ou na melhor das hipóteses, com bocados de gelo, comprado em barra, que se ia partindo, à medida das necessidades e se mantinha embrulhada numa sarapilheira, para não derregar rapidamente.
Era uma gasosa com um leve sabor a limão, que bebida muito depressa provocava uns arrotos monumentais, que a rapaziada aproveitava para fazer concursos. Prémios para o maior número de carreirinha e para o que conseguisse troar mais forte.
A higiene e segurança do frasco não eram os seus pontos fortes e daí o seu desaparecimento.
Nessa época, Évora fazia gala em se apresentar sempre asseadinha, sem papeis ou outros lixos espalhados pelas ruas. Claro que a Câmara utilizava para esse efeito indigentes e outros trabalhadores mal remunerados que passavam o dia inteiro a não fazer outra coisa que não aquela.
Tinham mesmo um pau com um alfinete na ponta com que espetavam as beatas dos cigarros entaladas entre as pedras da calçada. Muitas destas, infelizmente, eram recicladas pelos funcionários que as apanhavam e as fumavam directamente, as desfaziam e enrolavam em mortalhas ou, na sua falta, em papel de jornal.
Os internados no Albergue Dsitrital, com saída aos domingos, engrossavam as fileiras deste exército de apanhadores de pontas de cigarro. Lembro o Bau-Bau, o Tomás das Castanholas e outras caras de que já esqueci os nomes.
No Verão, ao fim da tarde, havia mesmo uma camioneta com água que lavava as ruas. Antes de começar a chover, as sarjetas eram desentupidas e lavadas para garantir um escoamento fácil das águas da chuva e evitar os maus cheiros.
Bem sei que eram menos pessoas, menos lixo, trabalhadores menos exigentes e mal pagos, mas a cidade estava limpa.
Com a classificação de Património Mundial e mais turismo por inerência, com uma universidade aqui a funcionar, com maior grau de educação média do cidadão, com maior eficácia dos meios utilizados, não será possível garantir um melhor aspecto da cidade e uma maior qualidade nos serviços de limpeza e recolha dos lixos?
Custa-me a crer.
Por este andar, julgo mesmo que podia ser uma solução, para o partido no poder, de minimizar a pobreza que por este País corre e que até já afecta cidadãos com licenciaturas e outros graus académicos superiores.
Pobrezinhos …mas limpinhos!

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terça-feira, outubro 16, 2007

Discutir o Sexo dos Anjos

Já não tenho pachorra para ouvir discussões que não levam a lado nenhum, sobretudo quando dos assuntos não existe distanciamento suficiente para opiniões desapaixonadas. Guerra justa ou injusta? Não há guerras justas!
Províncias ultramarinas ou colónias? Em que é que isso contribui para alterar o problema?
Gerimos mal os territórios e, portanto e até só por isso, merecíamos de lá ter saído. Os Árabes estiveram na Península Ibérica durante oito séculos, geriram-na melhor do que nós os territórios africanos, onde apenas estivemos cerca de cinco, e acabaram por ser corridos.
Porque eram doutra cor, porque tinham uma religião que não foi aqui entendida, porque a língua não foi elemento aglutinador como foi o Português em África, porque não impuseram a sua cultura.
Não há que estranhar, que coisas dessas conduzam a um mesmo fim. E de forma semelhante. Com guerra que nós considerámos sempre justa e certamente eles injusta. Portugal foi construído sobre essa guerra, do mesmo modo que os novos países africanos, saídos das ex-colónias ou das ex-províncias ultramarinas.
Para o país ocupante a guerra é sempre parcial ao passo que para os ocupados a guerra é sempre total. Só desse modo se podem justificar desaires dos melhores exércitos do mundo em confronto com exércitos mal equipados mas com uma arma mortífera tremenda – a vontade de ganhar e pôr o inimigo em debandada dali para fora. Assim aconteceu aos Estados Unidos no Vietname, está a acontecer no Iraque e se passou com a ex-União Soviética no Afeganistão.
Somos grandes ou pequenos no modo como gerimos as nossas vitórias e as nossas derrotas, os nossos êxitos ou os nossos desaires.
Do meu ponto de vista só conseguimos gerir bem um território ultramarino e não por mérito unicamente nosso. O Brasil foi desenvolvido e transformou-se rapidamente num território grandioso, tornando-se impossível governá-lo a partir de Lisboa o que se tornou muito mais evidente quando a corte ali se refugiou.
Se tivesse havido um olhar diferente em relação aos restantes territórios, talvez a realidade tivesse sido outra, com desfecho provavelmente diverso.
Hoje, há apenas que lamber as feridas que ficaram e ter em relação às ex-colónias um olhar sereno, ajudando os novos países a encontrarem o equilíbrio de que necessitam para o seu desenvolvimento e partilhar com eles a nossa memória comum.
Deixámos a língua, deixámos algumas saudades em alguns aspectos e é bom que seja possível estreitar os laços que quase desfizemos com a guerra.
É cedo para fazer outros balanços.

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domingo, outubro 14, 2007

O "Papel" do Velho

Imagem daqui

Os mais novos e os mais velhos estão igualmente vulneráveis em aspectos ligados à saúde, à segurança, à alimentação, à mobilidade, entre outros.
As razões não são evidentemente as mesmas, mas os efeitos nefastos equivalem-se. A saúde, nos mais novos, é posta em risco pela incúria, pelos maus tratos, pela violência sexual que sobre eles se abate muitas vezes. Nos velhos, é a idade a principal causadora das doenças, o que não significa que sejam imunes a maus tratos, abandono ou sevícias políticas e até religiosas.
A segurança é talvez o aspecto em que mais se notam as fragilidades, por ignorância dos riscos nos mais novos, por doenças incapacitantes da memória e do raciocínio nos mais velhos, por inaptidão da sociedade em proteger todos da malvadez dos homens, das políticas avessas a garantir emprego, habitação, educação, em suma, incapaz de fazer regredir e acabar com a exclusão social. A lei da selva trazida para o meio urbano. Um salve-se quem puder, em que os mais fortes deglutem os mais fracos, aí aparecendo as crianças e os velhos no topo da pirâmide, alvos fáceis porque indefesos.
A alimentação, se determina nos mais novos as capacidades que lhes queremos garantir ou recusar à partida, significa nos mais velhos a qualidade do pouco tempo que lhes resta, depois duma vida de trabalho. Para uns e outros as carências de ordem alimentar afectarão necessariamente toda a sociedade em que se inserem, porque nela se reflectirão em encargos sociais e de saúde.
Por fim, a mobilidade ou a falta dela condiciona ambos, novos e velhos, na busca de soluções para as suas necessidades. Podem ter o comer debaixo do nariz, que não lhe chegarão se não se puderem movimentar.
Não terei esgotado todas as fragilidades que afectam idosos e crianças, mas tentei equacionar aquelas que mais os afectam directamente, pelas consequências imediatas.
Parece impossível que no Portugal democrático, dito europeu, se mantenham condições que nada têm que ver com o que nos chega de outros países com populações semelhantes em número, com recursos em tudo paralelos e que põem nestes grupos etários o melhor que podem para garantir o futuro e olhar com orgulho para quem ajudou a construir o presente.
Retirar aos velhos as poucas regalias que ganharam o direito de ter, depois do tempo e do trabalho lhes ter roubado a vida, só por sadismo político inqualificável.
Os velhos deixaram de ser trapos para passarem a ser papel higiénico. Contrariamente às crianças podem, eleitoralmente, transformar-se em guardanapos para limpar a boca de quem assim os maltrata agora.

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sexta-feira, outubro 12, 2007

Tempo de esquecer ou de lembrar

Nem sempre o que temos para lembrar é bom, da mesma forma que nem tudo é mau.
Uma qualidade importante na minha idade é saber escolher dos arquivos o que nos dá prazer recordar, criando um “firewall “ que impeça o acesso, ainda que inadvertidamente, àqueles que nos causam dor ou desconforto. Não devemos apagá-los, porque muitos nos trouxeram ensinamentos, que permitiram evitar contratempos ou outros aborrecimentos.
De alguma forma, tudo o que nos acontece na vida tem aspectos positivos e negativos. Há que explorá-los de forma adequada.
As vidas só nos acontecem uma vez, pelo menos no meu entendimento, pelo que devem ser exploradas ao máximo. Não há que lamentar senão o tempo perdido a analisar exaustivamente o que nos aconteceu e podia ter acontecido. A vida é descoberta. Por isso mesmo com aspectos mais conseguidos e outros nem tanto.
Os itinerários só são em parte escolhidos por nós. Ninguém tem culpa de ter nascido aqui ou acolá. Ser filho de preto ou de branco, nascer judeu ou islamita. Só a partir daí é possível, dentro das limitações que isso impõe, arranjar alternativas. O dinheiro, a educação, o engenho e a arte poderão ser aliados importantes.
De vez em quando, da mesma forma que fazemos com o nosso computador, há que reordenar os ficheiros e colocar nos favoritos aqueles que mais nos interessam ter à mão de semear e em pastas temáticas aquelas memórias a que não pretendemos aceder com frequência.
Mas, ainda assim, acontece elas aparecerem sem que tenhamos sido ouvidos nem achados para o facto.
Entre essas memórias, encontra-se uma situação que vivi profissionalmente, que como militar não aspirava, mas que acabou por me pôr em contacto com uma realidade que do ponto de vista humano foi gratificante.
O traquejo então conseguido, veio a mostrar-se fundamental na abordagem à gestão de pessoal civil que tive ocasião de experimentar anos mais tarde, num contexto empresarial.
Trabalhava-se então praticamente sem computadores, fazendo todo o trabalho de gestão de mil e quatrocentos funcionários civis, que constituíam os efectivos da Marinha nessa altura, manualmente.
O histórico guardava-se em processos quase desfeitos pela passagem sistemática dos dedos por cima dos cartões de suporte, sempre que se queria procurar qualquer informação.
Aprendi na pele a necessidade de acesso rápido à informação em tempo oportuno, para preparar decisões fundamentais na vida profissional dos funcionários pelo que terão sido dados, nessa altura, os primeiros passos no sentido da informatização dos serviços.
Muitos brincavam com o facto de ser o único elemento masculino num universo de dez ou mais funcionárias que me assessoravam, glosando uma situação, na altura muito conhecida das telenovelas brasileiras, das “rolinhas do coroné”.
Era gente de trabalho. Trabalho duro, não reconhecido.
Muitas delas certamente já se terão aposentado, outras estarão noutros serviços. Recordo-as a todas na pessoa da sua chefe, que julgo estar em vias de se reformar e que detinha em memória todo o conhecimento necessário ao bom funcionamento do serviço, sendo o pilar fundamental da repartição. Sem ela não sei o que teria feito numa área completamente estranha e que atravessava um período de grandes mudanças, um pouco semelhante ao momento que hoje se vive na Função Pública.
Um beijinho Isabel, extensivo a todas elas.

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quinta-feira, outubro 11, 2007

Correr e persistir

A actividade física é óptima, mas às vezes paga-se um preço elevado.
Retomei, por conselho médico, uma velha prática minha, de há um par de anos, de correr ao fim da tarde. Fiz isso dois dias seguidos, intercalando a corrida com a marcha, depois meteu-se a abertura da caça, onde andei uns quantos quilómetros. Tive uns dias preenchidos com deslocações e trabalhos de jardinagem e só ontem retomei a corrida, depois de escarificar a relva.
Talvez tenha exagerado na duração da corrida, porque no final sentia-me muito cansado e com dor no diafragma, logo abaixo do esterno.
Após o banho e depois de medir a tensão, que estava boa, sentei-me a descansar um pouco. A dor mantinha-se e não tinha apetite, mas entendi que estava na hora de jantar e assim aconteceu. Jantei, mastiguei dois comprimidos de Aero-OM, porque julguei tratar-se de ar no estômago, resultado de dificuldades respiratórias durante a corrida.
A dor continuou e prolongou-se por toda a noite, não me dando descanso que tanto precisava. De manhã mantinha-se embora mais atenuada, e ainda a sinto mais de vinte e quatro horas sobre a corrida de ontem.
Durante a noite diagnostiquei-me úlcera de estômago, mais tarde pancreatite, por fim cancro do estômago activado pela intensa actividade física dos últimos dias. Uma coisa foi certa - a minha má disposição para tudo e para todos.
Ao sentir o dissipar da dor, tenho agora consciência que tudo não terá passado dum excesso de esforço para os músculos abdominais, habituados a um repouso de anos e agora despertos, de repente, para trabalho árduo. Queixaram-se e pregaram-me um tremendo dum susto.
Amanhã vou tirar a prova dos noves. Não vou desistir. Sou persistente, para me não chamar de teimoso, palavra feia por me poder conotar, de alguma maneira, com a pessoa que hoje dirige os nossos destinos, que também tem a mania de correr e também é bastante… persistente nas suas tomadas de posição.

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terça-feira, outubro 09, 2007

Vida de Cão

Durante muito tempo a expressão, vida de cão, era entendida como uma vida difícil, havendo que lamber muitas mãos para garantir as sopas e os sobejos, que não eram muitos.
O cão tinha normalmente lugar na rua, um pouco ao Deus dará e, na melhor das hipóteses, arranjava poiso debaixo da mesa onde, de quando em vez, lá sobrava um ossito ou algumas peles, de bacalhau que fossem.
Cão, tinha que justificar o ganho de cada dia ladrando à aproximação de estranhos, intimidar com o seu aspecto feroz a entrada ilegítima em quintas e mansões, ajudar na manobra de manadas e rebanhos, mordendo os cascos das vacas tresmalhadas ou na coxa dos ovídeos, obrigando-os a regressar aos limites definidos pelo pastor.
Perdigueiro que no primeiro dia de caça não parasse as perdizes e levantasse as lebres longe do caçador, ou era largado no campo, longe dos caminhos que o pudessem trazer de regresso ou abatido (como um cão), sem dó nem piedade.
A canzoada só era vacinada contra a raiva, porque era obrigatório por lei. Isto, para aqueles que não podiam escapar aos olhares das autoridades locais.
Durante muito tempo a existência de um cão era sinal de abastança, já que isso só era permitido a quem tinha sobras alimentares. Ninguém pensava em alimentá-los de forma diferente, nem no mercado abundavam alternativas. Pedia-se no talho os sebos do borrego e os ossos de vaca e com eles se melhorava a dieta desses animais.
Ainda me lembro do meu pai dar purgas de óleo de rícino aos cães porque de vez em quando havia que limpá-los das bichas e outros parasitas intestinais.
Hoje, há cães que têm uma vida melhor que muitos portugueses. Ainda bem para os cães. Ainda mal para os portugueses.
Se entrarmos num supermercado, a dificuldade é escolher o tipo de ração que havemos de dar ao nosso companheiro canídeo. Dos granulados aos enlatados, com ou sem aditivos vitamínicos e cálcicos, tudo ali existe para lhes dar o conforto alimentar e o aspecto saudável que necessitam. Até dentífrico, para que os seus dentes sejam sadios e não tenham mau hálito, como muito boa gente que conhecemos. Material de limpeza e higiene de várias marcas e para todos os fins, garantindo-lhes um estado de asseio, que não assiste a muitos humanos.
A ida ao veterinário passou a estar na ordem do dia e lá vão os nossos inseparáveis companheiros com mais frequência do que muitos de nós, para serem pesados, desparasitados, vacinados contra uma data de doenças e muitas vezes operados. Há mesmo quem os leve ao psicólogo para lhes aliviar o stress de viverem paredes meias com os seus donos psicóticos e terem que lhes aturar estas paranóias.
Outros ainda, vão regularmente ao cabeleireiro fazer cortes e permanentes, arranjar unhas e fazer madeixas.
Para alguns, as férias dos donos são passadas em estâncias hoteleiras para canídeos, onde têm tratamento de primeira, muito superior ao prestado nos asilos de velhos, agora designados de lares da terceira idade, a que eu chamaria de última idade, bem como nos infantários do estado.
Os seus donos podem ter umas férias despreocupadas em relação aos seus bichinhos de estimação.
Pensando melhor, quem tem vida de cão?

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quinta-feira, outubro 04, 2007

A Lili e o Tarzan

Imagem daqui

Não são personagens de ficção. Eram dois lindos pastores alemães ou lobos de Alsácia, não posso precisar, que guardavam o quintal e as traseiras dos edifícios da padaria e residência dos meus tios.
Eram agressivos e sempre que eu lá estava tinham que ficar fechados durante o dia, para que não houvesse nenhum azar comigo.
Ele era frontal, ela matreira.
Naquele tempo as casas de banho, ficavam no exterior da residência, tanto a que servia para tomar as duchadas frias, que eu adorava, como a que era utilizada para necessidades mais básicas. As duas em zona de jurisdição da Lili e do Tarzan, o que pressupunha realizar todos aqueles eventos, quando os dois se encontravam fechados.
Para mim, fora daquele período só no penico ou então com companhia certificada.
Havia um portão de ferro forjado que separava o pátio interior da residência do quintal e do telheiro onde se situavam as ditas casas de banho e a cavalariça. Esta albergava um cavalo de tiro, grande, talvez por eu ser pequeno, castanho, de pata larga peluda,que era utilizado para puxar uma carroça, com pneus de automóvel em vez das rodas de madeira com aro de ferro. Aparelhava com uma cabeçada cheia de guizos, que se ouviam a uma distância enorme. O seu tratador e cocheiro fazia entregas de pão por todas as zonas vizinhas.
Adorava levantar-me às quatro ou cinco da manhã e ir com ele, sentado ao seu lado, segurar nas rédeas enquanto ele vendia o pão e às vezes até guiar a carroça nos locais menos perigosos.
Ele conhecia toda a gente pelo nome e se a memória me não falha, com alguma intimidade nalguns casos. Lembro-me de me dizer que aquilo não era para contar a ninguém. Só estou a fazê-lo com quase sessenta anos de distância, companheiro.
Calcorreei a seu lado zonas muito complicadas. Duas viraram zonas elegantes –Ameixoeira e Musgueira, hoje Alta de Lisboa. Outras nem tanto – Galinheiras, Mucharros e Camarate. Mas a volta incluía Sacavém, Moscavide, Bairro da Encarnação, Olivais. Era uma volta imensa, repartida por dois períodos diurnos. Saíamos com as luzes ainda acesas e a segunda volta terminava com elas já acesas outra vez.
Mas voltemos à Lili e ao Tarzan. Só os meus tios lhe davam de comer. Rojões. Sempre rojões. Compravam-se às rodas, do tamanho das de bicicleta que se iam esboroando à medida das necessidades. Cheiravam a ranço. Não sei se gostavam daquilo mas não tinham alternativa.
Só mesmo um osso de vaca, de vez em quando, para afiar os dentes. Alguns dos padeiros experimentaram-nos ao aventurarem-se por áreas que não deviam.
Não brincavam em serviço estes dois parceiros. Ai de quem lhe não conhecesse as regras.
Nunca dei nota de terem tido descendentes. Presumo que nunca lhes deixaram tê-los. Por serem irmãos e como tal consanguíneos, ou simplesmente porque não quiseram adocicá-los com a moleza da maternidade e paternidade.
Acabaram por morrer envenenados, ao que julgo, por alguma mão que morderam.

Música no Ar

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terça-feira, outubro 02, 2007

O Voo da Morte

As primeiras águas outonais, as primeiras formigas de asa, cheias de memórias da minha infância.
Curiosamente, tendo vivido até aos dezassete anos sempre no Alentejo, é junto da grande cidade, em Lisboa, que tenho contactos mais chegados com as formigas de asa. Na Charneca do Lumiar, onde passava uma parte substancial das minhas férias de Verão, em casa duns tios, fiz amizade com a rapaziada dali, que passou a deixar-me participar nas suas brincadeiras e na forma de suprir algumas das necessidades porque alguns passavam.
Os meus tios bem que tentaram que não me desse com alguns que consideravam más reses, mas sempre os iludi nesse aspecto, juntando-me com eles, à socapa, para irmos aos figos, às uvas, aos pássaros ou jogar à bola.
E foi numa destas dos pássaros, que tomei contacto com as formigas de asa, mais ou menos nos finais de Setembro, após as primeiras chuvas.
Enchemos um frasco com as ditas, agarrámos nas “ratoeiras”, que eu conhecia por armadilhas para pássaros, mas que em boa verdade também eram usadas para apanhar os roedores.
Estas armadilhas eram construídas sobre uma raquete de madeira, onde se fixava uma estrutura metálica dobrada com uma mola que a distendia, quando armada.
Um arame segurava-a nessa posição, de forma instável, susceptível de disparar a qualquer mexida, fechando-se sobre a vítima, no caso, os passarinhos.
A ratoeira era tapada com uma fina camada de areia, numa zona previamente limpa de ervas, onde fosse fácil aos pássaros verem, do ar, a formiga de asa que era colocada no tal arame que fechava a armadilha. Escusado será dizer que a única coisa visível era mesmo a formiga de asa, vivinha da silva, mexendo-se sobre a areia, excitando os seus ingénuos predadores.
Normalmente, íamos armar nas quintas das redondezas, junto da antiga estrada militar, que passava pelo Forte da Ameixoeira e seguia depois para a Calçada de Carriche.
A espera raramente era prolongada porque os passarinhos estavam permanentemente a cair na esparrela que lhes fora montada.
Não sou capaz de os enumerar por espécies, mas sei que os havia grandes, médios e pequenos.
Já vinham de lá depenados e iam enriquecer a dieta fraca de alguns desses meus amigos.
Não me orgulho do que fazia, mas não me recrimino pelo que fiz.
Havia um certo equilíbrio na Natureza, entretanto desfeito pela poluição, pelo uso indiscriminado de pesticidas e pelo abandono a que as terras foram votadas. A agricultura garantia a sobrevivência de muitas espécies que se mudaram ou sucumbiram.
A vida é muitas vezes construída sobre a morte.
Falou-se aqui da morte duns quantos pássaros, mas ficou esquecida a morte de milhares de formigas de asa que cumprem um desígnio da Natureza, que lhes põe asas para as levar para longe do seu formigueiro, em busca de novos horizontes, a que muito poucas sobrevivem.
Também um dia me puseram asas para poder voar para bem longe do sítio em que nasci, onde alonguei o olhar e descobri maravilhas, que hoje tento recordar e partilhar.

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