As incongruências do ser civilizado, democrata, ímpio, moderno numa palavra.
Ter a expectativa de vida aumentada com os avanços da ciência, dos conhecimentos médicos e das novas tecnologias postas ao seu serviço. Se não for aqui, no estrangeiro, que é já ali ao lado, numa viagem de horas por avião, nesta aldeia global.
O acesso a esses meios está, no entanto, cada vez mais complicado, com a falta de emprego, consequente falta de dinheiro, com o envelhecimento generalizado da população, com as despesas da saúde cada dia mais elevadas e os recursos financeiros resultantes das comparticipações da população activa menores. Logo, a resposta do Serviço Nacional de Saúde, que disso só tem o nome, ser cada vez mais pequena e estou em crer, que muito em breve será nenhuma.
Convenhamos que não será fácil gerir este drama.
Logo a expectativa de uma vida mais longa, perdeu-se.
Outra incongruência resulta do facto de sermos diariamente bombardeados com radiações dos ex-libris da nossa modernidade – televisores, telemóveis, computadores, microondas, para falar só dos mais generalizados, porque outros há de efeitos, porventura, mais nefastos, embora atingindo uma parte diminuta da população.
Como consequência, imediata ou nem tanto, a infertilidade, a impotência masculina, a surdez, as arritmias cardíacas e outras sequelas, que fazem com que nos reproduzamos menos, com que tenhamos menos prazer nas relações que estabelecemos.
Não esgotando a panóplia de incongruências, não poderia deixar de referir aquela maravilha com que a indústria nos contempla e que se chama automóvel.
A velocidade a que nos deslocamos, poupa-nos imenso tempo nos transportes públicos que nos permite estar mais tempo com a família, que também tem o mesmo problema e que portanto também terá que dispor doutro carro para se deslocar. Para pagar este encargo acrescido há que arranjar um part time e lá se terá ido o tempo com a família. Além disso há dois seguros, duas revisões, etc, etc, etc.
Os miúdos lá ficam entregues à ama, no jardim escola, na escola da rua.
A melhoria de vida corre o risco de levar o casal ao divórcio, por discussões permanentes sobre o uso e abuso dos carros.
O sermos incrédulos permite-nos olhar a vida e a modernidade como um bouquet de oportunidades, onde não tem cabimento o escrúpulo, o remorso, a consciência pesada da moral ofendida.
Pisar os outros na escalada passou a ser prática incrementada nas escolas, em que só “os fortes” sobrevivem. Não há lugar para os normais.
A democracia dá-nos,no entanto, a possibilidade de constituirmos uma minoria com voz activa, mas sem audiência.
Não importa se fazemos um médico interessado, humano, atento e de sentido prático. Há que garantir que aquele que tirou medicina está apto a ganhar o Prémio Nobel, mesmo que não saiba ou não queira curar uma gripe.
E lá vamos de sonho em sonho perdido, de pesadelo em pesadelo andando, no caminho mais longo para a alegria de viver, mas mais coerente com o que desejámos: viver de forma moderna como os outros, democrática à nossa maneira, stressada quanto baste e curta quanto possível, porque a vida tornou-se uma grande chatice e uma grande complicação.
Já não há espaço para sermos nós.
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