sábado, maio 08, 2010

"Se há-de ser para os porcos..."

Na minha meninice, a economia familiar de subsistência obrigava a que as pessoas que tinham algum espaço no quintal ou hortejo, criassem o seu porquito para matar no Inverno e o engordassem com os desperdícios alimentares seus, que não seriam muitos, ou e dos vizinhos.
Para isso deslocavam-se com carrinho de mão com dois latões, de porta em porta, recolhendo os sobejos, deixando atrás de si um rasto de odores característicos, capazes de virar o estômago ao mais resistente.
Outros havia que faziam a recolha com carroça puxada por muar, normalmente de noite, para dar menos nas vistas e incomodar menos as pessoas.
A minha mãe tinha do lado de fora da porta da cozinha, que dava para o quintal, a chamada lata das sobras, onde se deitavam os restos de comida, de vegetais e cascas de frutos, que eram entregues à noitinha a um dos filhos da Ti Elisa, que além dos porcos tinha também vacas de leite, às quais tenho muitas dúvidas de que não desse também parte das sobras.
Mais tarde, já homem, lembro-me de criadores de porcos irem buscar os restos dos ranchos dos quartéis, fazendo com eles a engorda dos ditos e dos quartéis-mestres, que recebiam algum por fora.
De toda esta prática ancestral, terá ficado o termo “se há-de ser para os porcos”, que reclamava o aproveitamento dos restos para os próprios ou, num sentido mais amplo, poderia querer dizer que as coisas acabam por sobrar para nós, em vez de irem parar aos porcos.
Este dito, no sentido amplo antes indicado, sempre foi muito usado por mim e terei sido responsável pela sua divulgação e mesmo espalho por toda a Guiné, em 1970.
O então Major Firmino Miguel, assistindo preocupado ao embarque de parte do meu destacamento, incluindo eu próprio, a bordo dos helis para uma operação na raia fronteiriça com o Senegal, junto a Bigene, que seria a minha estreia naquele teatro de operações, achou por bem, dar-me umas palavras de encorajamento, ao que lhe terei respondido que não havia azar, terminando com a expressão “Se há-de ser para os porcos…”.
Ele encarregar-se-ia de a divulgar e banalizar por toda a Guiné, que só tinha outra capaz de a rivalizar “O que tu tens é nervos…”.
Ora bem, eu diria que no contexto actual, esta expressão volta a ter sentido, mas não com o anteriormente indicado.
Ora, atente-se!
Se eu quisesse retrucar a quem pensa que pode retirar-nos não só o direito, mas a necessidade, básica para a grande maioria, do 13º e 14º meses, dir-lhe-ia – Não!Não! Se há-de ser para os porcos, antes para mim!

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quarta-feira, maio 05, 2010

Só de ouvir cantar o cuco

Depois de algum tempo afastado do matizado da paisagem alentejana, neste momento pintada de todas as cores do arco-da-velha, regressei por algumas horas ao seu contacto materno, com cheiros de coentros e alho na mesa, de rosmaninho, alfazema e alecrim no olhar.
Lá estavam os melros meus conhecidos, roubando na minha cara os morangos acabados de pintar. Também as papoilas vermelhavam nos canteiros menos tratados e me relembraram outro Maio, em que mudavam de mão, entre sorrisos, como um suspiro de alívio e uma promessa de futuro mais solidário, mais justo, mais humano.
Debruçadas nos muros de madressilva ou nas pérgolas das portadas, cachos de rosas brancas, amarelas e vermelhas, davam-me as boas vindas.
No tanque de rega, tabuleiros de esferovite mostravam a maternidade hidropónica de tomateiros, agriões, beterrabas, couves e alfaces, à espera de desembarque, numa esperança de terra firme e prometida.
Tudo renasce com a humidade deixada no solo e o calor dum sol, até aqui, bonançoso.
É a vida, ao virar de cada esquina, dizendo que o Inverno já passou e que está na altura aproveitar o Sol que ri e nos enfeita.
Lá longe, cantava o cuco!

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sábado, maio 01, 2010

Palavras desatadas

Cada um de nós sente as palavras, cá dentro, a quererem sair de forma diferente. Como um arroto, uma flatulência, um soluço ou como uma torrente, um turbilhão, uma loucura.
Arrastam-se pela pena ou pela laringe ou escapando-se pela nesga da porta, voam para as alturas intangíveis da vontade.
Depois desfazem-se como castelos de cartas ou se enraízam e crescem como árvores que querem florir e infrutescer, dar sombra e protecção. Às vezes, iluminar…
Pela mão dum amigo, compadre, camarada e companheiro de muitas lutas, tive acesso a dois livros escritos pelo pai, lutador antifascista, homem de acção e voz solta pela vida, que nos legou a sua palavra de escutar, avisada, conhecedora, premonitora, a um tempo rígida e flexível, agridoce, tão bela e sedutora quanto a voz duma criança entoando hinos etéreos à vida, que viveu com a intensidade da revolta sempre contida e finalmente liberta numa primavera, em Abril.
Destaco pelo estilo dois versos que considero lindíssimos.

“Se é meu modo de falar
Este modo de escrever
Como se para dizer
O que temo confessar
Tivesse de procurar
- Enleado no querer
E no medo de poder –
Outro modo de expressar
Porque não hei-de eu escrever
Neste modo de falar? “….

Noutra passagem:

…“As ideias, seres viventes,
Por viventes produzidas,
Discutidas, transparentes,
São do Mundo pertencentes
Para ao mundo ser servidas.
São riquezas imanentes
De um espólio universal
Como se frutos pendentes
De úbere manancial.”

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