quinta-feira, outubro 04, 2007

A Lili e o Tarzan

Imagem daqui

Não são personagens de ficção. Eram dois lindos pastores alemães ou lobos de Alsácia, não posso precisar, que guardavam o quintal e as traseiras dos edifícios da padaria e residência dos meus tios.
Eram agressivos e sempre que eu lá estava tinham que ficar fechados durante o dia, para que não houvesse nenhum azar comigo.
Ele era frontal, ela matreira.
Naquele tempo as casas de banho, ficavam no exterior da residência, tanto a que servia para tomar as duchadas frias, que eu adorava, como a que era utilizada para necessidades mais básicas. As duas em zona de jurisdição da Lili e do Tarzan, o que pressupunha realizar todos aqueles eventos, quando os dois se encontravam fechados.
Para mim, fora daquele período só no penico ou então com companhia certificada.
Havia um portão de ferro forjado que separava o pátio interior da residência do quintal e do telheiro onde se situavam as ditas casas de banho e a cavalariça. Esta albergava um cavalo de tiro, grande, talvez por eu ser pequeno, castanho, de pata larga peluda,que era utilizado para puxar uma carroça, com pneus de automóvel em vez das rodas de madeira com aro de ferro. Aparelhava com uma cabeçada cheia de guizos, que se ouviam a uma distância enorme. O seu tratador e cocheiro fazia entregas de pão por todas as zonas vizinhas.
Adorava levantar-me às quatro ou cinco da manhã e ir com ele, sentado ao seu lado, segurar nas rédeas enquanto ele vendia o pão e às vezes até guiar a carroça nos locais menos perigosos.
Ele conhecia toda a gente pelo nome e se a memória me não falha, com alguma intimidade nalguns casos. Lembro-me de me dizer que aquilo não era para contar a ninguém. Só estou a fazê-lo com quase sessenta anos de distância, companheiro.
Calcorreei a seu lado zonas muito complicadas. Duas viraram zonas elegantes –Ameixoeira e Musgueira, hoje Alta de Lisboa. Outras nem tanto – Galinheiras, Mucharros e Camarate. Mas a volta incluía Sacavém, Moscavide, Bairro da Encarnação, Olivais. Era uma volta imensa, repartida por dois períodos diurnos. Saíamos com as luzes ainda acesas e a segunda volta terminava com elas já acesas outra vez.
Mas voltemos à Lili e ao Tarzan. Só os meus tios lhe davam de comer. Rojões. Sempre rojões. Compravam-se às rodas, do tamanho das de bicicleta que se iam esboroando à medida das necessidades. Cheiravam a ranço. Não sei se gostavam daquilo mas não tinham alternativa.
Só mesmo um osso de vaca, de vez em quando, para afiar os dentes. Alguns dos padeiros experimentaram-nos ao aventurarem-se por áreas que não deviam.
Não brincavam em serviço estes dois parceiros. Ai de quem lhe não conhecesse as regras.
Nunca dei nota de terem tido descendentes. Presumo que nunca lhes deixaram tê-los. Por serem irmãos e como tal consanguíneos, ou simplesmente porque não quiseram adocicá-los com a moleza da maternidade e paternidade.
Acabaram por morrer envenenados, ao que julgo, por alguma mão que morderam.