sexta-feira, julho 16, 2010

O Sagrado

A maior parte das pessoas não se dá conta do que significa respirar.
Sabem-no bem aqueles que já estiveram em situações de apneia prolongada ou que de alguma forma sentiram o halo de vida escorrendo-lhe por entre os dedos, como enguia fugidia.
Para estes os sons agudizam-se, os cheiros refinam-se e o olhar distingue o sexo dos anjos. Cada segundo é vivido como uma hora, cada dia está ligado à ideia de eternidade.
As referências passam a ser outras e os valores também mudam. A solidariedade dá muitas vezes lugar ao egoísmo e a emoção determina as escolhas.
A ideia de normalidade perde-se e os temores divinos e morais esvaem-se.
Respirar deixou de fazer parte das funções vitais automáticas para se tornar num treino permanente de sobrevivência vascular e cerebral.
A respiração é o que neste momento elevo e celebro como sagrado.

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sábado, maio 08, 2010

"Se há-de ser para os porcos..."

Na minha meninice, a economia familiar de subsistência obrigava a que as pessoas que tinham algum espaço no quintal ou hortejo, criassem o seu porquito para matar no Inverno e o engordassem com os desperdícios alimentares seus, que não seriam muitos, ou e dos vizinhos.
Para isso deslocavam-se com carrinho de mão com dois latões, de porta em porta, recolhendo os sobejos, deixando atrás de si um rasto de odores característicos, capazes de virar o estômago ao mais resistente.
Outros havia que faziam a recolha com carroça puxada por muar, normalmente de noite, para dar menos nas vistas e incomodar menos as pessoas.
A minha mãe tinha do lado de fora da porta da cozinha, que dava para o quintal, a chamada lata das sobras, onde se deitavam os restos de comida, de vegetais e cascas de frutos, que eram entregues à noitinha a um dos filhos da Ti Elisa, que além dos porcos tinha também vacas de leite, às quais tenho muitas dúvidas de que não desse também parte das sobras.
Mais tarde, já homem, lembro-me de criadores de porcos irem buscar os restos dos ranchos dos quartéis, fazendo com eles a engorda dos ditos e dos quartéis-mestres, que recebiam algum por fora.
De toda esta prática ancestral, terá ficado o termo “se há-de ser para os porcos”, que reclamava o aproveitamento dos restos para os próprios ou, num sentido mais amplo, poderia querer dizer que as coisas acabam por sobrar para nós, em vez de irem parar aos porcos.
Este dito, no sentido amplo antes indicado, sempre foi muito usado por mim e terei sido responsável pela sua divulgação e mesmo espalho por toda a Guiné, em 1970.
O então Major Firmino Miguel, assistindo preocupado ao embarque de parte do meu destacamento, incluindo eu próprio, a bordo dos helis para uma operação na raia fronteiriça com o Senegal, junto a Bigene, que seria a minha estreia naquele teatro de operações, achou por bem, dar-me umas palavras de encorajamento, ao que lhe terei respondido que não havia azar, terminando com a expressão “Se há-de ser para os porcos…”.
Ele encarregar-se-ia de a divulgar e banalizar por toda a Guiné, que só tinha outra capaz de a rivalizar “O que tu tens é nervos…”.
Ora bem, eu diria que no contexto actual, esta expressão volta a ter sentido, mas não com o anteriormente indicado.
Ora, atente-se!
Se eu quisesse retrucar a quem pensa que pode retirar-nos não só o direito, mas a necessidade, básica para a grande maioria, do 13º e 14º meses, dir-lhe-ia – Não!Não! Se há-de ser para os porcos, antes para mim!

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quarta-feira, maio 05, 2010

Só de ouvir cantar o cuco

Depois de algum tempo afastado do matizado da paisagem alentejana, neste momento pintada de todas as cores do arco-da-velha, regressei por algumas horas ao seu contacto materno, com cheiros de coentros e alho na mesa, de rosmaninho, alfazema e alecrim no olhar.
Lá estavam os melros meus conhecidos, roubando na minha cara os morangos acabados de pintar. Também as papoilas vermelhavam nos canteiros menos tratados e me relembraram outro Maio, em que mudavam de mão, entre sorrisos, como um suspiro de alívio e uma promessa de futuro mais solidário, mais justo, mais humano.
Debruçadas nos muros de madressilva ou nas pérgolas das portadas, cachos de rosas brancas, amarelas e vermelhas, davam-me as boas vindas.
No tanque de rega, tabuleiros de esferovite mostravam a maternidade hidropónica de tomateiros, agriões, beterrabas, couves e alfaces, à espera de desembarque, numa esperança de terra firme e prometida.
Tudo renasce com a humidade deixada no solo e o calor dum sol, até aqui, bonançoso.
É a vida, ao virar de cada esquina, dizendo que o Inverno já passou e que está na altura aproveitar o Sol que ri e nos enfeita.
Lá longe, cantava o cuco!

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sábado, maio 01, 2010

Palavras desatadas

Cada um de nós sente as palavras, cá dentro, a quererem sair de forma diferente. Como um arroto, uma flatulência, um soluço ou como uma torrente, um turbilhão, uma loucura.
Arrastam-se pela pena ou pela laringe ou escapando-se pela nesga da porta, voam para as alturas intangíveis da vontade.
Depois desfazem-se como castelos de cartas ou se enraízam e crescem como árvores que querem florir e infrutescer, dar sombra e protecção. Às vezes, iluminar…
Pela mão dum amigo, compadre, camarada e companheiro de muitas lutas, tive acesso a dois livros escritos pelo pai, lutador antifascista, homem de acção e voz solta pela vida, que nos legou a sua palavra de escutar, avisada, conhecedora, premonitora, a um tempo rígida e flexível, agridoce, tão bela e sedutora quanto a voz duma criança entoando hinos etéreos à vida, que viveu com a intensidade da revolta sempre contida e finalmente liberta numa primavera, em Abril.
Destaco pelo estilo dois versos que considero lindíssimos.

“Se é meu modo de falar
Este modo de escrever
Como se para dizer
O que temo confessar
Tivesse de procurar
- Enleado no querer
E no medo de poder –
Outro modo de expressar
Porque não hei-de eu escrever
Neste modo de falar? “….

Noutra passagem:

…“As ideias, seres viventes,
Por viventes produzidas,
Discutidas, transparentes,
São do Mundo pertencentes
Para ao mundo ser servidas.
São riquezas imanentes
De um espólio universal
Como se frutos pendentes
De úbere manancial.”

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segunda-feira, abril 19, 2010

So you think you can write*

Imagem daqui
Todos temos a mania de um dia poder passar a papel aquilo que são as nossas garatujas, como forma de nos eternizarmos.
Só que o papel é cada vez mais escasso e não deve ser conspurcado com falsas expectativas e muito menos para servir interesses pessoais e mesquinhos.
Esta porta aberta do tamanho dum buraco negro, a Net, é palco suficiente de exibições nem sempre felizes, mas de alguma forma gratificantes para quem gosta de partilhar opiniões, maneiras de ser e de estar, ilusões e utopias.
As designadas redes sociais, têm hoje uma procura desenfreada, dando escape às desilusões permanentes a que estamos sujeitos na nossa teimosia em subsistir às agruras do dia a dia.
São, como tudo nos dias de hoje, um negócio maluco para os seus mentores.
Fazem a vez daquilo que no Alentejo se designava por cantinho do lume, reunindo à volta do brasido nas longas e duras noites de Inverno, familiares e amigos recontando estórias e inventando manhas que permitissem sobreviver ao dia seguinte.
As estórias estão todas já contadas e, duma forma geral, bem! Só temos a possibilidade de lhe acrescentarmos alguns toques pessoais, como se fosse uma assinatura ou um perfume. Como os cães que fazem o seu xixi, em tudo que é sítio, para assinalar a sua passagem ou delimitar a sua área de influência.
Num livro, a que recentemente tive acesso por intermédio de um amigo, com um título fabuloso – A Luz da Cal, ao canto do lume** – descobri que a maior parte das estórias que julgávamos propriedade exclusiva das nossas infâncias ou do nosso imaginário colectivo alentejano ou mesmo nacional, tem origens longínquas quer na distância quer no tempo, remontando muitas delas, com nomes ligeiramente diferentes, a épocas remotas e povos com histórias, culturas, religiões e línguas que nada têm a ver com a nossa.
Não havia Net, não estava nalguns casos facilitado o acesso à escrita e muito menos à leitura e tudo se passava de boca em boca, por cantigas, contos, lendas e estórias. Desde sempre a vontade de querer fazer chegar aos outros a nossa visão do mundo nem que fosse por linguagem gestual.
Por este canto me fico, com a noção de que é mais do que suficiente para as minhas aspirações de escrita, ou melhor, de registo.
Notas:
*So you think you can dance – Título dum concurso televisivo Americano sobre dança moderna
**A Luz da Cal ao canto lume – tradição oral do Concelho de Mora, da autoria de Joaninha Duarte

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quinta-feira, abril 08, 2010

Uma certa forma de olhar

Será que o olhar vê?
Julgo que não!
Olhar é como filmar. Só depois de fazer rewind se consegue ver o que o olhar reteve. Às vezes isto é quase em simultâneo, outras nem por isso.
Julgo que a maior parte da vida se passa sob o nosso olhar sem que nos quedemos um segundo a mirá-la, como talvez merecesse. Depois, já era...
Quem o consegue fazer, normalmente deixa esteira como um cometa ou uma chuva de estrelas. Estou a lembrar-me dos artistas plásticos e dos poetas que registam com um pincel, cinzel ou pena o que o seu olhar fixou e a sua alma viu.
Quando a vida se torna mais cara como o pão nas padarias ou a cotação do petróleo brent, o olhar torna-se mais atento, mais rápido, realçando cada imagem, cada gesto, cada emoção, cada halo de vida.
Porém, a sofreguidão de tudo olhar e de tudo querer ver também cega, como uma luz branca que não deixa ver a cor nem a forma. O equilíbrio perde-se e alma enche-se de manchas sem sentido nem razão.
O Sol brilha todos os dias, mas só para quem o puder olhar e ver.

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segunda-feira, março 29, 2010

Quem és tu
Que me empurras quando hesito
Que me agarras quando estou à beira de cair
Que assinalas o trilho quando perdido estou
Que dás força para suportar o peso que carrego
Que fazes rir os meus olhos de água
Que fazes da dor este poema?
Eu?
Eu, sou a vontade indómita de ser!

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