sexta-feira, outubro 24, 2008

Podes roubar-me o pão, a fome não...(José Régio)

Enquanto militar do activo sofri na carne a tortura de ter que ser aquilo que queriam que fosse, sem sentir muitas vezes que deveria assim ser.
Hoje, afastado da efectividade do serviço percebi o quanto teve de bom para mim o ter sido daquele modo e não doutro.
Somos todos fruto da educação que fomos recebendo ao longo da vida. Em casa, na escola, no trabalho, no círculo de amigos em que nos movimentamos.
Viver é dar e receber. É uma troca, nem sempre equilibrada e justa, mas que nos vai moldando.
Em casa, fui enquadrado pela rigidez de princípios, sobretudo, do meu pai, detentor também dum enorme sentido de justiça.
Nasci já com a guerra no fim, mas ainda lhe apanhei o rabisco sem propriamente lhe sofrer o impacto directo. Lembro-me do racionamento, da miséria generalizada, do Estado Novo com a sua velha ordem. Os embarques das tropas que seguiam para a Índia, de madrugada, muito contestados e com cenas de violência entre a polícia e os familiares dos militares que partiam.
Como membro da Academia e da sua Secção Artística, a revolta de ver recusada pela censura interna do Liceu uma peça de José Régio – O meu caso – que pretendíamos levar à cena na festa do 1º de Dezembro.
Claro que a entrada na Escola Naval não me foi fácil, sobretudo pelo regime de internato, a que nunca estivera habituado.
Durante os longos períodos de embarque e navegação, senti bem na pele o quanto isso me havia sido útil.
À própria praxe, que tanto me custara suportar, também lhe reconheci a utilidade, mormente, durante o curso de fuzileiro e na guerra colonial que fiz na Guiné - o espírito de sacrifício, o tormento do desconhecido, a angústia e expectativa, o controlo sobre o medo, a camaradagem, o sentido de entreajuda, a “endurance”.
A variedade de situações por que passei foram esculpindo a peça em que hoje me tornei, arestas torneadas, pele curtida pelo sol, a rebeldia sofrida e retraída, finalmente liberta, os olhos buscando horizontes, a ingenuidade sarada pelo tempo, o gosto salgado das coisas, a alma soprada por alísios e tufões.
O regresso ao convívio da minha cidade natal trouxe-me a descoberta de nunca daqui ter saído, mau grado não conhecer praticamente ninguém.
O sabor dos coentros, sei agora, nunca ter esquecido, assim como tão bem cantam os melros e tão mal as rolas.
Se alguma coisa aprendi ao longo de todas estas vivências foi a respeitar o próximo, quer o tenhamos por amigo, adversário ou inimigo.
Também julgo ter aprendido que as situações complicadas requerem que estejamos atentos e actuantes.
Como militar, embora reformado, peçam-me sacrifícios mas não me peçam compreensão.
Sou…como sou! Sou, como me fizeram!

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