segunda-feira, junho 22, 2009

Isto da gente ser surda, é muito triste!

Tramoia, tem agora à volta de setenta anos, muito longos e sofridos. Duma infância que não teve, de ter andado na escola apenas o tempo para soletrar algumas palavras e escrever o nome, o mais do tempo gastando-o atrás das ovelhas, matando lebres à paulada na cama ou quando se levantavam à sua aproximação, para melhorar a fraca dieta. De vez em quando ficava zonzo de comer tantas amoras e medronhos fermentados.
Não faltavam também os puxões de orelhas por deixar as ovelhas entrar na seara por ter adormecido debaixo dum freixo junto à ribeira ou por andar de fisga a apanhar rãs que variassem a janta, constituída as mais das vezes por um bocado de pão duro e dumas azeitonas retalhadas, ou dum rábano e dum pedaço de toucinho salgado, que espetava num pau afiado e assava na fogueira.
No campo, pegou em tudo o que era trabalho de homem, ainda gaiato. Depressa percebeu que deste modo não haveria de arranjar fortuna que o gato não comesse. Assim, logo que teve oportunidade, para já não falar da tropa que se aproximava e que o podia levar para a Índia ou para África, resolveu emigrar para a Suíça, onde já havia conterrâneos seus.
Aí, também teve que fazer um pouco de tudo e de se habituar a falas estranhas e comidas a que faltava o sabor dos coentros e dos poejos.
Com a primeira vinda de férias, palavra que nunca fizera parte do seu vocabulário, não deixou de levar uma mão cheia de sementes das coisas boas que lhe faltavam.
O frio não é bom conselheiro para quem vem do sequeiro e em breve arranjou achaques que o trouxeram de volta um par de anos passados.
Por aqui se entreteve a trabalhar num terreno que comprara com as poupanças feitas, coisa que ainda hoje vai fazendo, com as dificuldades ,que o peso dos anos e do muito toucinho que foi pondo à volta da cintura, acarretam.
Para apanhar do chão qualquer coisa, tem que se ajoelhar como que para cumprir uma promessa. A luz dos olhos já não é o que era e os sons vão-se-lhe escapando dia a dia. Mal consegue ouvir o barulho ensurdecedor da sua motocultivadora, que continua a usar religiosa e afincadamente como companheira fiel destes anos todos.
A surdez tem-no isolado do mundo que o rodeia e só aos gritos se consegue uma conversa capaz. De vez em quando, escapa-se-lhe um traque de que se não dá conta do barulho.
Tanto que ele gostava de os dar bem sonoros e agora só lhe saem mesmo é surdinas malcheirosas.
Isto da gente ser surda… é muito triste!

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