quinta-feira, maio 14, 2009

S.to António de Bissau

Hoje, ao ver o programa sobre a guerra colonial, na RTP1, pareceu-me ter entrado na máquina do tempo.
Chegou-me o cheiro pútrido da mata sombria e húmida, que abafava o ruído dos nossos passos. Chegou até mim o silêncio dos momentos de grande tensão que antecediam o matraquear das armas. Senti o suor correr-me por dentro da alma encalorada e esbaforida.
Mas senti também que fomos todos um pouco enganados. Nós, porque fizemos uma guerra que não queríamos com resultados negativos. Eles, que fizeram a guerra que quiseram, mas não lucraram com a vitória. No final todos perderam. Todos perdemos.
No tempo do Spínola na Guiné, os guinéus gozaram dum estatuto que nunca haviam tido nem nunca mais tiveram. Foi-lhes reconhecida uma cidadania que nós, militares, não conhecemos ainda hoje.
As populações sob a nossa vigilância e protecção, de alguma forma, gozavam duma prosperidade e apoio sanitário que nunca haviam tido. Houve evacuações para Bissau de parturientes, por helicóptero, coisa que nós hoje ainda não temos por cá.
Os médicos e enfermeiros das unidades militares fizeram maravilhas na prevenção e combate das doenças endémicas conseguindo praticamente erradicar a doença do sono e controlar o paludismo.
Bastava aos africanos não gostarem duma qualquer medida que muitas vezes os militares eram obrigados a tomar para sua própria segurança ou protecção, para logo se ouvir dizer por parte dos "homens grandes" que iam "fazer queixa no Spínola".
Adivinhava-se que o PAIGC iria reagir de forma violenta à tentativa quase conseguida de separar as populações primeiro e os próprios combatentes depois, da sua estrutura de comando, integrando-os no sistema de defesa colonial.
Estes projectos do Spínola não eram apadrinhados na totalidade por Lisboa. Ele próprio remava contra a maré.
Spínola acabou por ser não só o Governador e Comandante-Chefe da Guiné como uma espécie de Santo Padroeiro.
Por brincadeira mais do que por racismo corria uma piada em Bissau sobre ele, que rezava assim:

Santo António de Bissau
És de todos o mais casmurro
Do preto queres fazer branco
E do branco fazer burro

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3 Comments:

Blogger Luís Alves de Fraga said...

Uma acção psico-social que só servia para retardar a vitória do PAIGC, mesmo que ou se levada até às últimas consequências.
Às vezes os Povos mostram mais estultícia do que sábia inteleigência, até quando votam livremente.

15/5/09 17:00  
Blogger Luís Alves de Fraga said...

A maldita "gralha" não podia faltar! Inteligência em lugar de inteleigência, como é óbvio.

15/5/09 17:03  
Blogger JR said...

O Spínola teve o condão de entender,honra lhe seja feita, de que estas guerras nunca se ganham no campo da batalha.
Enquanto houver um guerrilheiro a guerra continua.
Os movimentos de libertação, pela boca de alguns dos seus representantes neste programa, mostraram bem o quanto temeram as manobras "psicopoliticosociais" promovidas pelo velho cabo de guerra.
Ninguém tinha dúvidas
da muita demagogia envolvente, mas o que aconteceu com os militares portugueses, que já estavam fartos da guerra, sobretudo os profissionais, alguns com quatro comissões em cima, também estava a verificar-se com os guerrilheiros com muitos anos consecutivos de luta no pelo, em piores condições, com mais baixas e sem férias nem descansos.
Claro que teria sido possível uma solução diferente com diálogo entre as partes que tivesse poupado vidas e tanto flagelo.
Quanto ao voto livre, acredito que não existe de facto, pois está sempre condicionado, no mínimo pela utilidade.
Mas congratulo-me que passado que foi tão pouco tempo sobre esta guerra seja possível juntar antigos antagonistas numa conversa a todos os títulos meritória pelo esclarecimento de muitas dúvidas e, sobretudo, por mostrar que nenhum dos beligerantes lutava contra pessoas, mas e apenas contra sistemas, que os opunham e que hoje parecem pertencer a um passado comum.

15/5/09 22:41  

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