quarta-feira, abril 15, 2009

Postal de angústia

Canal de Moçambique (1965)

Há noite por dentro e por fora. Noite que se sente como uma cólica intestinal. O vento negro enfeita as peças de vante com grinaldas de espuma branca, que vão e vêm, ritmadas como um pulmão artificial.
Das cobertas exala um cheiro forte e ácido. Lábios gretados murmuram baixinho contorcendo-se em espasmos nervosos. Sorrisos amarelos mostram cáries desalinhadas. As conversas iniciadas ficam suspensas na vaga de anseio que sobe e desce nos peitos e gargantas como bolha num nível de pedreiro.
As brigadas de limitação de avarias deslocam-se por todo o navio, aos tombos, penduradas em mangueiras das bombas de esgoto submersíveis, montadas nas traves de escoramento, embrulhadas nas lonas de empanque como um exército fantasma, de armamento estranho, à procura dum inimigo desconhecido que ninguém sabe como nem por onde atacará. Não deixa, por isso, de ser temível, por traiçoeiro.
Noite de vigília, noite amarga, que põe olheiras pisadas nos rostos acobreados e duros dos homens.
A angústia crescendo como cogumelos em estrumeira, não dá possibilidade de partilha. A solidão toma conta de cada um, apagando a pouca luz que se lhes esgueirava dos olhos. A ansiedade sucede-lhe num desejo imperioso de madrugada que nunca mais acontece.
Finalmente, os uivos do vento acalmam-se com o raiar dum novo dia.

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4 Comments:

Blogger platero said...

estória verdadeiramente antológica

parabens, abraço

16/4/09 19:39  
Blogger JR said...

Se antológica quer dizer seleccionável, então só poderá ser selecção dos júniores, porque o texto foi escrito quando tinha pouco mais de vinte anos.
As estórias quando vividas com a intensidade dos vinte anos são sempre candidatas a entrar para a história, a nossa história.
Abraço amigo

17/4/09 13:35  
Blogger Luís Alves de Fraga said...

Pois é! Por razões de natureza académica não entrei na EN, em 1961. Opção de momento: concorrer à Academia Militar e escolher servir na Força Aérea, embora não sendo piloto. Antes, tinha feito 40 dias de navegação num velho paquete de e para a mais ocidental das ilhas dos Açores; havia apanhado bom e mau tempo. Tinha gostado de sentir a vibração das máquinas na luta com as vagas; fui para a ré gozar plenamente a amplitude da subida e descida do navio.
Vivi uma vida no meio de gente que gostava do ar, dos aviões... Pelos vistos do que eu, realmente, gostava era do mar!

Parabéns por ser capaz de, com pouco mais de vinte anos, descrever tão bem uma noite de mar bravio no canal de Moçambique.
Um abraço

17/4/09 23:09  
Blogger JR said...

Naturalmente se fosse hoje não a teria escrito assim, já que se tratava da maior procela que havia experimentado até à data, o que, aliado à idade do navio e às suas qualidades náuticas, nos deixou a todos e a mim em especial, pela verdura das coisas do mar, um tanto intimidados.
A Marinha de Guerra inglesa, que em coisas do mar é de facto campeã, manda sair os seus navios sempre que as condições de tempo são agrestes, o que acontece com frequência naquelas paragens.
Estando as suas guarnições temperadas com aquele sal e pimenta, estarão aptas a actuar em quaisquer condições, por pior que sejam.
Suponho que não se poderá usar o mesmo figurino para as coisas do Ar, já que as condições de segurança ficariam seriamente afectadas.
Um abraço

18/4/09 19:47  

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