quarta-feira, outubro 08, 2008

Ibo - A ilha do diabo

Não sei se já contei esta estória, mas também não tem muita importância esse facto, pois que não seria capaz de a reproduzir do mesmo modo, mil vezes a contasse.
Ao remexer uns papéis daquilo que é a memória das coisas, ou seja, uns apontamentos rabiscados no momento em que ocorreram os factos, descobri neles um episódio que na altura me chocou grandemente por ter destruído a imagem que queria guardar do modo como a guerra colonial estava a ser conduzida por nós.
Moçambique, Ilha do Ibo, meados de 65, a bordo do Aviso de 1ª Classe Bartolomeu Dias. A missão consistia em transportar da prisão que funcionava na fortaleza da ilha, uns quantos prisioneiros de guerra, designados “turras”, para uma prisão perto de Lourenço Marques.
Em virtude do calado do navio tivemos que ficar fundeados a uma distância de terra de cerca de uma milha.
Os prisioneiros foram transportados em embarcações à vela locais, que armavam com uma vela latina de grandes dimensões, envergada no mastro. Cada embarcação trazia de dez a vinte prisioneiros, escoltados por uns quantos soldados armados de G-3.
A manobra de atracação não era fácil, devido às refregas rijas e variáveis, que obrigavam a constantes manobra da vela para conseguir ganhar barlavento e depois deixar descair a embarcação sobre o navio, com a vela arriada. A mestria nativa foi amplamente demonstrada na série de manobras perfeitas conseguidas.
Uma vez a embarcação atracada eram largadas as redes de abordagem que permitiriam a gente desembaraçada escalar os cerca de dois metros do costado do navio com facilidade.
Só que os presos vinham num tal estado de debilidade física, que se tornou necessário içá-los para bordo com ajuda do pessoal do navio.
Com os meus vinte e dois anos e uma pujança física adequada também quis ajudar e, enquanto um dos soldados empurrava um velhote a partir da embarcação, eu cá de cima agarrei-lhe num braço e puxei-o. Foi então que tive a sensação mais estranha da minha vida – a impressão de lhe ter arrancado o braço e de estar a içar apenas essa parte do corpo. Mas não era isso que acontecera. Eu estava de facto a içá-lo inteirinho da Silva. Só que não pesaria mais do que um membro superior dum corpo normal.
O cheiro pestilento, o estado de inanição, os parasitas e o medo que tresandavam e que lhes fazia bater os dentes como castanholas, obrigou a que lhes fosse dado um banho e feita uma desinfecção pelo pessoal do serviço de saúde do navio, antes de ocuparem parte duma coberta da guarnição, improvisada em prisão. Foram-lhes distribuídas fardas de serviço interno para substituírem os farrapos que lhes cobriam o corpo, entretanto queimados.
Segundo relato dos soldados acompanhantes, a maioria dos presos já era obrigada a comer, fazer as necessidades e dormir de pé, por falta de espaço na prisão da Ilha.
A princípio, os presos mostraram alguma relutância em entrar no navio, porque estavam convencidos que iriam ser lançados ao mar, algures.
Depois do banho, da desinfestação e duma alimentação igual à do pessoal da guarnição, começaram a acalmar e acabaram mesmo por estabelecer relacionamento com o pessoal, com as poucas palavras de português que conseguiam alinhar.
Ao chegarmos ao nosso destino – LM – negaram-se a sair de bordo e foi preciso quase maltratá-los para que isso acontecesse.
Choravam e agarravam-se às nossas mãos como se estivessem a agarrar-se à vida.
Nunca mais vi a guerra da mesma maneira!

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1 Comments:

Blogger platero said...

estive no Ibo duas ou três vezes

muito pobre mas lindo. Famoso também pela mestiçagem apurada

12/10/08 19:27  

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