sexta-feira, setembro 19, 2008

O Feitiço

Imagem daqui
Gury vai correndo de um lado ao outro a várzea de restolho de milho. As suas orelhas não param de excitação e empenho. De vez em quando estaca, cheira, volta atrás para depois se esgueirar pelos regos, entre torrões ressequidos, quebrando os caniços que restam do milheiral.
O Sol ainda aquece, as nuvens altas põem sombras no terreno áspero e o vento sopra fraco de oeste. Já estamos nisto há três horas e a tarefa não está fácil.
O suor corre-lhe em bica pela língua que lhe não cabe na boca.
Vai controlando a distância que o separa de mim, olhando de revés, para que se não perca o seu esforço de busca, levantando as codornizes mais longe do que o alcance da arma.
Conhece-lhes o cheiro intenso adocicado e consegue seguir-lhes o rasto até que se quedem de cansaço ou temor, tentando o mimetismo como escapatória ou levantando para um voo que as afaste do perseguidor.
O que lhe resta da cauda, abana agora mais depressa anunciando a proximidade da ave. Pára. Dá dois passos curtos como se pisasse algodão em rama com o rabito agora parado, a cabeça esticada, o olhar fixo num ponto indefinido. Parou com a pata direita da frente no ar, como que para não pisar o seu objecto de busca.
Parece uma estátua agora. O seu corpo hirto espera uma ordem minha para avançar, não deixando que a ave se mova também. É uma espécie de feitiço em que os dois se envolvem e que os não deixa mover, um entendimento de vida e morte anunciada que os dois conhecem de sempre. O instinto escreveu-lhes isso no genoma ou o genoma apurou-lhes o instinto para isso.
Tanto faz. A estória só tem o fim que eu quiser ou for capaz de lhe dar.
- Vai!
Gury entende a ordem e salta em frente no preciso momento em que a ave levanta também, escapando por pouco à boca que a procura, e encetando um voo rectilíneo, enviezando depois para o lado em que declive do terreno se acentua. Ouve-se um tiro, depois outro.
Gury sai disparado na direcção da codorniz.
Se quiser, ponha um epílogo a esta narrativa. Eu não o faço por pudor.

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1 Comments:

Blogger platero said...

arrisco:

"guardada está a codorniz
para quem tem cão
com bom nariz"

de resto, vale o abraço e os votos de continuadas e boas caçadas

19/9/08 18:18  

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