terça-feira, setembro 11, 2007

O elo frágil

Sentado no alpendre das messes, olhava sem ver para onde a vista me levava, talvez para lá do tarrafo, bem na margem sul do Cacheu, perto dos acontecimentos que dias antes nos haviam colhido de surpresa, numa operação lançada no final da época seca, para destruir celeiros e sementeiras, contrariando a logística de guerra do In.
Ao contornar uma orla de bolanha, demos de caras com um grupo de homens e mulheres que preparavam a sementeira. Ao avistarem-nos, puseram-se em fuga. Apesar de ordens para parar não o fizeram e houve disparos. No terreno ficou um homem velho com um tiro numa perna, que sangrava abundantemente.
O enfermeiro fez-lhe um garrote e foi pedida a sua evacuação. A resposta, já esperada de resto, foi de que não havia evacuações para o In. Explicado que se tratava dum elemento da população, a resposta foi peremptória – não havia disponibilidade de helis.
A operação ia durar mais dois dias e não podíamos carregar com um homem pesado e por isso houve que pensar na solução mais cristã, que seria matá-lo, evitando uma morte dolorosa e prolongada.
Pedidos voluntários, não apareceram e eu também não fui capaz de o fazer.
Optou-se por deixá-lo com o garrote, depois de injectado com morfina para as dores. Foi-lhe recomendado que, de vez em quando, aliviasse a pressão do garrote.
Dois dias depois, terminada a operação e já de regresso ao ponto de reembarque, entendi fazer um desvio para passar pelo local onde o havíamos deixado.
Não havia ninguém no local. Não havia rastos de sangue a não ser no preciso lugar em que havia sido tratado. O seu estado geral não lhe permitiria ter sobrevivido por muito tempo, a não ser que tivesse sido de imediato socorrido.
Quisemos todos acreditar que sobreviveu.
A vida e a morte andam de mão dada, sem que ninguém se aperceba da fragilidade do elo que as liga. Estar no lugar errado, estar dependente duma evacuação ou de não haver voluntários para dar o golpe de misericórdia, por fim de haver alguém com um mínimo de meios e capacidade para uma intervenção de emergência.
Ao longe, a vista anima-se com uma nuvem vermelha que rodopia vertiginosamente e com grande desenvolvimento vertical, como se desejasse ligar o Céu e a Terra. Também ela transporta desígnios de destruição no seu trajecto.
Fomos para dentro, fechámos portas e janelas e quedámo-nos apreciando a violência, agora da Natureza, como se procurasse fazer justiça pelas próprias mãos.
Durou cerca de dois minutos. No seu caminho, o tornado seco encontrou um antigo barracão de chapas de zinco, que servira para armazenar mancarra e que dava agora guarida aos nossos mantimentos. Da sua cobertura não restou uma só chapa. Algumas delas foram encontradas a mais de dois quilómetros de distância, levadas como se fossem plumas.
As instalações onde nos encontrávamos foram poupadas à destruição mas não escaparam a um banho de poeira vermelha, fina como o ar que a transportou.
Fina e vermelha como a imagem que tenho de dor e morte.

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