segunda-feira, novembro 27, 2006

Viagens salgadas (8)

Só regressei aos navios uns anos depois. O Almeida Carvalho e os cruzeiros BT na costa atlântica continental.O triângulo acústico dos Açores e a cobertura sonar da Costa Portuguesa impuseram durante anos a realização de testes para verificação do estado de propagação das frequências sónicas, com o estabelecimentos de perfis em função da época do ano que ditava a temperatura e salinidade da água nas diferentes profundidades. Eram os chamados perfis batitermográficos. Além destes, o navio oceanográfico fazia também estudos relacionados com a fauna piscatória da plataforma continental, embarcando para o efeito equipas de técnicos do IH e do antigo Instituto de Biologia Marítima. Depois de realizadas análises físico-químicas e biológicas da água, determinadas cargas e distribuições de zooplâncton e fitoplâncton, era possível calcular efectivos piscatórios, orientar e estimar capturas. Recebemos um dia a bordo a visita dos nossos chefes militar e técnico, que connosco fizeram parte do cruzeiro. Numa prova de boa camaradagem e amizade um deles trouxe-nos um presente que lhe haviam enviado expressamente de França, mas que connosco quis partilhar. Quando embarcávamos uma tão grande quantidade de técnicos, obrigávamo-nos a fazer duas mesas ao almoço e ao jantar, porque não cabíamos todos numa só. Normalmente na primeira comiam os oficiais mais modernos e os técnicos que iam entrar de serviço e na segunda os restantes.
Pela primeira vez os navios de guerra embarcaram mulheres, com muitos problemas de adaptabilidade a esta sua nova utilização. Foi pois nesta segunda mesa que foi servido o presente no final do repasto do almoço. Foi pedido ao criado que trouxesse a sobremesa e foi trazido um embrulho que estava no frigorífico e que o nosso conviva e chefe abriu, colocando-o no centro da mesa. Ainda aí o não tinha pousado e já saíam disparadas duas das técnicas que tomavam connosco esta refeição. De facto, o embrulho continha uma bomba chamada queijo Camembert, que tresandava e que só por vergonha não nos pôs a todos dali para fora. Confirmou -se que os cheiros a bordo, sobretudo com balanço, ofendem. Num outro cruzeiro, algures junto às Berlengas, cerca das cinco horas, ainda muito escuro, o navio em estação, a pairar, com patim de trabalho arriado, projectores apontados para o local onde se içava “uma garrafada”1 muito comprida porque era uma zona de águas muito profundas. O radar estava repleto de ecos de embarcações de pesca, mas o navio encontrava-se com as luzes de posição e de trabalho adequadas, estava estacionado havia tempo no local e eu encontrava-me na asa da ponte assistindo à faina que era executada por técnicos do Instituto de Biologia Marítima. Às vezes acontecia ser necessário meter leme ou mesmo actuar com o hélice do leme por forma a manter a linha de suporte das garrafas em posição favorável de manobra. De repente fez-se de dia. À nossa volta projectores potentíssimos faziam do branco do costado do Almeida Carvalho, um espelho reflector que irradiava luz como um farol na noite escura. Dum bordo e doutro uma força naval soviética, deixara o "black out" em que navegava, para nos iluminar à sua passagem. Considerámos isso uma homenagem ao nosso trabalho, mas só não molhámos a roupa interior porque não calhou. Soubemos depois que a força era acompanhada a distância por uma fragata ou corveta nossa. Ficámos, pois, muito mais descansados. Mas foi neste navio que tudo aconteceu. Um dia, pouco depois de ter acabado o meu quarto da alva e baixado ao camarote para a minha higiene matinal, antes da formatura, fui violentamente interrompido nestes meus aprestos, por um toque de telefone interminável, quase um grito de alarme. Atendi e do outro lado, a voz do oficial de quarto que me havia rendido, um oficial RN, gritava a plenos pulmões - Imediato é a revolução! Venha para a Ponte! Meu Deus! Como eu a tinha esperado na noite anterior e ela não tinha vindo! Como foi bom ouvir aquele grito de alegria do Almeida! Benvindo a bordo amigo! (Continua)

1 Termo que designava um equipamento de recolha de amostras de água do mar a diversas profundidades, que era arriado e içado sob guincho próprio

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