quarta-feira, novembro 22, 2006

Viagens salgadas (5)

(Esta imagem foi tirada deste site

Depois de África, o Atlântico.

Os Açores a bordo do Navio Patrulha Fogo em nove sofridos meses de enjoo e incomodidade. Pode ser que haja navios mais duros para o mar que estes patrulhas franceses, mas deve ser difícil. Tinham um momento endireitante diabólico conseguido à custa dum balanço inconcebível. Acabei a comissão com dois calos nos cotovelos de me apoiar nas anteparas para não cair. Entrámos uma vez na Praia da Vitória com o cromato de zinco à mostra em todo o costado do navio. A tinta havia sido tirada pelo mar, assim como duas antenas de vara de radiocomunicações, as coberturas em lona das peças, do ouriço e do guincho do ferro cortadas em tiras e a balaustrada arrancada. Mais parecia o "Yellow Submarine" dos Beatles do que um vaso de guerra. Transportávamos uns soldados que iam “à terra” de licença e que já punham em causa o regresso às fileiras no final das curtas férias. Outra vez fomos às Flores buscar uma criança com uma apendicite aguda para ser operada no Faial. A mesma era acompanhada por uma enfermeira para a assistir na viagem. Quando chegámos à Horta, a criança estava bem e a enfermeira quase precisou de ser internada, pois pouco faltou para entrar em coma, devido ao enjoo. Cada vez que íamos para o mar, com bom ou mau tempo, a rotina cumpria-se religiosamente: enfermeiro à prancha com os comprimidos para o enjoo e toda a gente obrigada a engolir um. Havia os que diziam que os ditos lhe tiravam aquilo que, pelo menos a bordo, lhes não fazia falta de todo. Paciência! Apesar do “enjoo ser serviço”, havia que garantir que todos estavam em condições de poder realizar o trabalho que lhes competia. O Inverno em S.Miguel no final da década de sessenta não era fácil. Os filmes chegavam a estar uma semana seguida em exibição, por falta de avião, numa terra que não tinha grandes alternativas para gente nova. O café, à tarde, era o local de encontro. Aí se juntava toda a gente jovem da terra. Aí se trocavam olhares, se combinavam encontros e se planeavam festinhas. Com o chegar do bom tempo, as coisas melhoraram em termos de mar e em termos de terra. Só então foi possível apreciar a maravilha que constitui este arquipélago atlântico, de origem vulcânica, onde ainda é possível assinalar essa actividade. A Lagoa das Sete Cidades, as Furnas, a Lagoa do Fogo, a Lagoa do Congro entre outros, são lugares maravilhosos, onde naquela época, praticamente, não havia exploração turística. Mas foi o Pinhal da Paz, o local em S.Miguel que mais me enfeitiçou pela beleza da sua flora exuberante, com as azáleas e as buganvílias em flor formando cachos de pétalas de cores garridas que depois caiam para as veredas, atapetando-as de cor e silêncio. Parecia que toda a paz e beleza do mundo ali morava, numa calmaria que enchia a alma e punha luz nos olhos. Lá em baixo, o mar agora sereno e muito azul, à espera dum mergulho. Não podia deixar de registar um aspecto muito curioso de insularidade radical, que naquele tempo se vivia nas ilhas do Grupo Ocidental. Os Franceses tinham uma estação de rastreio nas Flores, tendo ali construído um heliporto e mais tarde um aeródromo para pequenas aeronaves militares. Mesmo assim era o Patrulha que prestava socorro em emergências com temporal já que os meios aéreos não podiam ser utilizados. Virada para esta ilha e à sua vista fica o Corvo, onde tive o privilégio de desembarcar, já que raramente isso era facultado pelo estado do mar ou pelas tarefas agendadas para o navio. Era domingo, não havia ninguém na única rua da terra, mas ouvia-se uma espécie de cantilena que vinha do lado da Igreja. Para lá nos dirigimos. Então assisti a uma cena que não sou capaz de reproduzir na íntegra por me faltar a arte e o engenho. Parecia uma cena saída directamente dum filme do Manoel de Oliveira, com a cor laranja de um pôr do Sol de Verão como fundo, um átrio de Igreja pouco cuidado, mas onde se desenrolava um espectáculo teatral sobre Inês de Castro, num Português arcaico, com sotaque açoriano, de que se não percebia patavina. Só me ficou no ouvido, qualquer coisa como - “Ei Senhô! Pobre Inâs! Qiuen la matou?”
(A continuar)

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1 Comments:

Blogger pekigirl said...

Essa imagem é muito bonita
Bjos da Rita "minhoca"

22/11/06 18:12  

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